terça-feira, 2 de abril de 2024

O PALÁCIO MONROE

 

O Palácio Monroe
https://pt.wikipedia.org/wiki/Pal%C3%A1cio_Monroe

    Para celebrar os cem anos de aquisição dos territórios da Nova França da América do Norte (Luisiana), os Estados Unidos promoveram a Exposição Universal de 1904 na cidade de Saint Louis (no estado do Missouri). Muitos países, dentre eles o Brasil, foram convidados a participar daquela que seria a 18ª Exposição Universal. Até então, as seguintes Exposições Universais, nos respectivos anos mencionados, haviam sido realizadas*: Londres (1851, 1862), Paris (1855, 1867, 1878, 1889, 1900), Porto (1865), Viena (1873), Filadélfia (1876), Sydney (1879), Melbourne (1880), Nova Orleans (1884), Barcelona (1888), Chicago (1893), Bruxelas (1897), e Buffalo (1901).

    Para sediar o pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Saint Louis, o engenheiro militar Francisco Marcelino de Sousa Aguiar projetou um palácio em estrutura metálica, o qual deveria ser montado no local da Exposição e, ao seu final, desmontado e remontado no Brasil. Na Exposição o Palácio foi um grande sucesso, chegando a vencer o principal prêmio de arquitetura.

Pavilhão do Brasil - Exposição Universal de Saint Louis - EUA
https://brasilianafotografica.bn.gov.br/?p=6248

    Finda a Exposição, o Palácio foi desmontado - conforme previsto. Sua cúpula e as suas estruturas metálicas foram transportadas para serem remontadas na cidade do Rio de Janeiro, onde foi reinaugurado em 1906 para sediar a 3ª. Conferência Pan-Americana. Nessa ocasião, por sugestão de Joaquim Nabuco e do Barão do Rio Branco, o até então chamado Palácio de São Luiz foi renomeado "Palácio Monroe" - em homenagem ao presidente James Monroe, que governou os Estados Unidos de 1817 a 1825, e que, quando presidente, havia propagado a ideia de que fossem coibidas as interferências da Europa na América ("Doutrina Monroe" - "América para os americanos").

    Depois da 3ª. Conferência Pan-Americana, o Palácio Monroe sediou a Câmara dos Deputados de 1914 a 1922; o Senado Federal de 1925 a 1960, e o Tribunal Superior Eleitoral (1945 a 1946). Com a inauguração de Brasília, e consequentemente a transferência da sede do Senado para a Praça dos Três Poderes, o Palácio Monroe passou a ter a função de escritório de representação (do Senado). Alvo de críticas fundadas em ideias de progresso a partir daí, argumentava-se que o Palácio atrapalhava o trânsito, que ia contra as convenções estéticas da época, que impediria a construção de uma linha do metrô, e que acarretava muito gasto público. Assim, em 1975 o Senado devolveu o edifício ao governo federal, e, em 1976, o Palácio Monroe foi demolido. Atualmente, no local, há um chafariz e um estacionamento subterrâneo explorado por empresa privada.

Chafariz que ocupa local onde esteve o Palácio Monroe
https://oglobo.globo.com/cultura/filme-traz-visao-critica-sobre-demolicao-do-palacio-monroe-17742911

    O Palácio Monroe pode ser visto em fotos antigas (muitas delas pela Internet), na imagem do reverso da cédula de 200 réis emitida em 1919, e, por acaso, em uma breve cena tomada por helicóptero, no filme "Roberto Carlos em ritmo de aventura" (1968; Dir. Roberto Farias).

Palácio Monroe - Reverso da cédula de 200 mil reis (1919)
https://sterlingnumismatic.blogspot.com/2015/10/memorias-do-senado.html

    Aqui no Brasil, e em muitos outros países, edifícios ricos em valor artístico, histórico e arquitetônico foram e continuam a ser derrubados em nome da exploração imobiliária e do progresso. Parece até que a ideia de construção já vem diretamente ligada à da destruição - e não da preservação. Quando me deparo com ideias assim, fico pensando que esse pouco valor dado aos símbolos do nosso tempo traduz o descaso que se tem atribuído a tudo aquilo que construímos, e que constitui a nossa própria história... Particularmente carrego comigo uma certa cumplicidade com alguns edifícios que conheci, alguns onde vivi, e outros por onde passei; pois eles, resistindo ao tempo, conseguem guardar em si muito do menino que um dia fui. Sinto uma tremenda aflição quando, às vezes, penso que essas minhas preciosidades poderão, um dia, ser destruídas. Lima Barreto, ao comentar as transformações pelas quais passava a cidade do Rio de Janeiro no começo do século XX, disse que "(...) não se pode compreender uma cidade sem esses marcos de sua vida anterior, sem esses anais de pedra que contam a sua história"**... e eu, mergulhado nas ideias do grande escritor, vou refletindo e dizendo a mim mesmo: "não posso me compreender sem que possa revisitar, sempre que quiser, os "Palácios" de pedra que aprendi a gostar - e onde deixei um pouco de mim."

_______________________ 

*O Brasil organizou a Exposição Universal de 1922, no Rio, em comemoração aos 100 anos de independência do Brasil.

**Trecho da crônica "O convento", publicada na Gazeta da Tarde em 21/7/1911 - republicada em "Cronistas do Rio" - org. por Beatriz Resende - Autêntica Editora, 2017 


sexta-feira, 29 de março de 2024

O FILME "NOIR"



Foto (fonte): https://7marte.com/2019/09/o-que-e-filme-noir.html

    O cinema é uma das formas de expressão artística que tem o poder e a magia de despertar diferentes sensações. Para isso, o gênero ou estilo de filme contam muito.

    O filme noir é um desses "gêneros" - ou, discute-se, não de "gênero", mas de "estilo", pois muitos entendem tratar-se de uma maneira de lidar com a imagem. O filme noir, em geral, trabalha com suspenses psicológicos que adentram a personalidade humana. Nesse "gênero" (chamemos assim), ninguém é santo: todos são, em algum momento, suspeitos. Diferente do maniqueísmo que era filmado até então, quando se identificava muito bem quem era o bandido e quem era o mocinho, no filme noir mulheres já são tratadas sem aquele perfil exclusivo de ingenuidade; os vilões às vezes nem são tão maus; e detetives já não são tão confiáveis quanto deveriam ser. Em geral, os traços marcantes do filme noir são as sombras, os ângulos de filmagem, cenas com fumaça e neblina - e eu acrescentaria, ainda, que a música também exerce um papel fundamental, pois cria todo um clima de mistério e suspense. Casacão, chapéu e cigarro, com histórias ligadas ao chamado "whodunit", ou seja, que descrevem investigação, com assassinato, são elementos que compõem os filmes noir. Neles, há quase sempre um indivíduo com muitas manias - em geral é o detetive, com falas fortes e absolutas. Há ainda muita narração em off, que reflete a necessária economia do número de cenas para a época; vejo, inclusive, um certo machismo no filme noir... se bem que a mulher já aparece mudando o seu perfil social nesse período: ela carrega ainda uma certa fragilidade, porém começa a ser vista como autora de gestos nem sempre nobres, muitas vezes falível, elaborando tramas e buscando atingir intentos de uma forma nem sempre muito ética.

    O filme noir teve sua fase áurea  de 1941 a 1958, nos Estados Unidos. Foram realizados, no "gênero" noir, dentre muitos outros, os seguintes filmes: "O falcão maltês" (Relíquia macabra) - (1941), dirigido por John Huston; "Pacto de sangue" (1944), "Farrapo humano" (1945), e "Crepúsculo dos deuses" (1950), dirigidos por Billy Wilder; "Laura" - (1944), por Otto Preminger;  "Gilda" (1946), por Charles Vidor; "A dama de Shangai" (1948), por Orson Welles.

    Humphrey Bogart ("Relíquia macabra"), Rita Hayworth ("Gilda", "A dama de Shangai"), Dana Andrews ("Laura"), Glenn Ford ("Gilda"), Barbara Stanwyck ("Pacto de sangue"), Lauren Bacall (À beira do abismo"), são alguns dos atores e atrizes associados ao filme noir

    Apesar de serem muito pobres em locações e cenários, de mostrarem cenas "forçadas", tais como aquelas em que, exemplificativamente, detetives aparecem no apartamento de qualquer suspeito, sem qualquer anúncio prévio, para interrogá-lo sempre que assim desejam, gosto dos filmes noir... Acho especialmente interessantes os seus títulos, tão fortes e macabros que, só de me deparar com eles, já sinto um certo arrepio: "A curva do destino", "Alma torturada", "O homem dos olhos esbugalhados", "Assassinos", "O beijo da morte"...


sexta-feira, 22 de março de 2024

CAROLE KING E O "TOCHA"


    "It's [never] too late" para falar da Carole King, do James Taylor e da Carly Simon - e do Paul Simon e do Cat Stevens, acrescento. "It's [never] too late" para me reorganizar e poder ouvir minhas playlists, com uma série de gravações marcantes que foram feitas por eles.

Carole King - "So far away" (Carole King) - do LP "Tapestry" (Epic, 1971)
https://www.youtube.com/watch?v=UofYl3dataU

    O meu amigo "Big Boy", que, de tão romântico, acho que morreu de amores (por tudo e por todos), era proprietário de um fusca vermelho, ao qual apelidamos "tocha".

Fusca vermelho
https://lartbr.com.br/carros-antigos/21636-fuscao-fuscavermelhorubi-fuscaovermelho/

    Nos finais das tardes de sábado o Big Boy estacionava o "tocha" na calçada do Bar do Vicente, na esquina da rua principal da nossa querida e minúscula cidade, e ali nós nos juntávamos em grupo de amigos, na calçada ao redor de uma mesa posta. E com as portas do "tocha" abertas, o Big Boy colocava para tocar uma fita k7 com as nossas gravações prediletas: "Wild world", "High out of time", "Tapestry", "That's the way I've always heard it should be", "Carolina on my mind", "Nobody does it better", "I haven't got time for the pain", "So far away"... "It's gonna take some time", "Embrace me, you child", "It's too late"... E de lá, da calçada do nosso fim de mundo, debaixo de uma árvore e das estrelas do céu,  cantávamos e brindávamos com nossos queridos ídolos sem que eles, de algum lugar no mundo, tivessem conhecimento da maneira carinhosa que estavam sendo celebrados e que tocavam os nossos corações.

    E nesse ambiente de música, conversa e bebida, como se já não houvesse comentado anteriormente inúmeras vezes, o Big Boy "filosofava":

    - "Só de ouvir a voz da Carole King eu já tenho vontade de ir não sei pra onde.

    E completava:

    - "Vicente, traga mais cerveja aqui pra mesa... e, pra mim, mais um uísque caubói".

    Com o pedido feito ao Vicente ele se levantava e entrava no "tocha", justificando sua movimentação:

    - "Vou aumentar o som. Quem sabe, de algum lugar por aí, essa danada me escuta".

    E a Carole King cantava:

     - "So far away/ doesn't anybody stay in one place anymore/ it would be so fine to see/ your face at my door...

    E eu, perdido em meus pensamentos, ficava imaginando a Carole King sorrindo, atenta a cada comentário que íamos fazendo... 


sexta-feira, 1 de março de 2024

OS "RUISEÑORES" PASSARAM POR AQUI

 

    Os mariachis são grupos que cantam música folclórica mexicana. São alegres e muito sorridentes. Foram formados, inicialmente, para animar festas de casamento - por isso a origem da palavra: do francês "mariage", que significa "casamento". Dentre as músicas folclóricas mexicanas, gosto, especialmente, de Las Mañanitas - uma música que costumava ser cantada no México, nas festas de aniversário, no momento de se cortar o bolo - mas também logo de manhã, em forma de serenata, para aquele ou aquela que aniversariava.

Las Mañanitas - Mariachi Conce - (Vicente Fernàndez)
https://www.youtube.com/watch?v=BPgmyhHvkFs

Las Mañanitas

 

Estas son las mañanitas

Que cantaba el rey David

Hoy por ser día de tu santo

Te las cantamos aqui

 

Despierta, mi bien, despierta

Mira que ya amaneció

Ya los pajaritos cantan

La luna ya se metió

 

Qué linda está la mañana

En que vengo a saludarte

Venimos todos con gusto

Y placer a felicitarte

 

El día en que tú naciste

Nacieron todas las flores

En la pila del bautizo

Cantaron los Ruiseñores

 

Ya viene amaneciendo

Ya la luz del día nos dio

Levántate de mañana

Mira que ya amaneció

 

Si yo pudiera bajarte

Las estrellas y un lucero

Para poder demostrarte

Lo mucho que yo te quiero

 

Con jazmines y flores

Este día quiero adornar

Hoy por ser día de tu santo

Te venimos a cantar

As Manhãs

 

Estas são as manhãs

Que o rei Davi cantava

Hoje por ser dia do teu santo

Cantamos para ti

 

Acorda, meu bem, acorda

Olha que já amanheceu

Já os passarinhos cantam

A lua já entrou

 

Que linda esta manhã

Em que vim cumprimentar te

Viemos todos com prazer

E prazer em parabenizá-lo

 

O dia em que nasceste

Todas as flores nasceram

Na local onde está o batistério

Cantaram os rouxinóis

 

Já vem amanhecendo

Já a luz do dia nós dia

Levanta-te de manhã

Olha que já amanheceu

 

Se eu pudesse descer

As estrelas, e uma estrela

Para te poder provar

O quanto te amo

 

Com jasmins e flores

Este dia eu quero enfeitar

Hoje por ser dia do teu santo

Viemos cantar

    Na letra de Las Mañanitas, há uma palavra que sempre cantei sem saber o seu significado. Mas hoje, especialmente, ao enviar meus cumprimentos de aniversário a um amigo que vive no México, encaminhei a ele, como ilustração, um vídeo de uma gravação de Las Mañanitas. E dessa vez bateu forte a vontade de conhecer a tal palavra.

    A tal palavra está na quarta estrofe da canção. Nela o autor diz que, "no dia em que o aniversariante nasceu, todas as flores nasceram; que, no batistério, os 'ruiseñores' cantaram". Mas... "ruiseñores"... o que significa? Foi justamente ela que me levou a fazer uma pesquisa. Quem seriam esses "señores" que foram cantar no batistério? Seria um grupo de senhores chamados, todos eles, Rui? Não, não poderia ser. Isso seria uma tremenda bobagem!

    No dicionário da Real Academia Espanhola, encontrei a seguinte explicação:

Ruiseñor - m. Ave canora del orden de las paseriformes, común en España y otras partes de Europa, de unos 16 cm de largo, con plumaje de color pardo rojizo, más oscuro en el lomo y la cabez que en la cola y el pecho, y gris claro en el vientre, que tiene pico fino, parduzco, y tarsos delgados y largos, y habita el las arboledas y lugares frescos y sombrios.

    Como meus conhecimentos de ornitologia são mínimos, não consegui entender a explicação. Compreendi, no entanto, que tratava-se de uma ave. Mas... "uma ave comum na Espanha, de uns 16 centímetros, com plumagem da cor parda, mais escuro no dorso e na cabeça do que na cauda e no peito, e acinzentado no ventre, que tem bico fino, acastanhado, e as partes superiores do pé (tarso) delgadas e largas, e habita os bosques e lugares frescos e sombrios".

    - Que ave seria essa? Você, meu caro leitor, saberia me dizer?

    Bom, para ser mais direto, resolvi apelar para o dicionário Espanhol - Português:

    "Ruiseñor (m.) - rouxinol". 

    Feliz com a descoberta, quase caí de costas de tanto rir da imagem que havia construído, ao pensar em uma porção de senhores sérios, todos eles chamados "Rui", cantando no batistério, no dia do ritual de purificação do aniversariante.

    Pois é: "ruiseñores" significa "rouxinóis". Simples assim! E que bela descrição foi feita no dicionário da Real Academia Espanhola! Ao conhecer agora  essa palavra da língua espanhola, senti a ressurreição imediata, aqui no meu local de trabalho, de um rouxinol que conviveu comigo na sala de visitas da casa de meus pais, por muitos e muitos anos. Esse rouxinol era amigo do imperador da China, morava nas páginas de um livro de contos de fadas do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, e também na narrativa gravada, desse mesmo conto, em um disco de vinil colorido que eu ouvia incansavelmente: "O Rouxinol do Imperador".

    - E assim, juntando a pena do Milton Nascimento, vou agora convivendo com todos os meus rouxinóis: "Rouxinol tomou conta do meu viver (...) / Todos os pássaros, anjos dentro de nós/ uma harmonia trazida dos rouxinóis"*. 

O Rouxinol do Imperador
https://www.youtube.com/watch?v=l8DzHrzMjFs
Adaptação e melodias: Elza Fiúza; Orquestração de Radamés Gnattali; Narradora: Sônia Barreto; Elenco Teatro Disquinho; ilustração: Joselito
_______________________ 
*início e refrão da canção "Rouxinóis" (Milton Nascimento), de seu álbum "Nascimento" (Warner, 1997)

domingo, 25 de fevereiro de 2024

VIVA O POVO BRASILEIRO

 

Wish you were here (Pink Floyd) - Colúmbia/CBS, 1975 - capa do disco
https://faroutmagazine.co.uk/pink-floyd-wish-you-were-here-cover-uncovered-behind-the-artwork/


O Brasil é, de fato, um país habitado por um povo muito talentoso. Do nada, um universo pintado de beleza se descortina. Eu não esperava absolutamente nada dessa apresentação... Mas as primeiras notas, a curiosidade diante da aparente insignificância... depois, a pronúncia, a surpresa... e o meu espanto! Por onde andou um coração simples, sentado em um boteco de ponta de vila, enquanto tinha um violão nos braços e cantava? O que transitou pelo seu pensamento? Pensou em pobreza? Lembrou de suas carências? Música é, de fato, o alimento da alma! Adorei este vídeo que recebi de um amigo... A pronúncia, o mergulho feito pelo talentoso brasileiro durante a sua travessia por "Wish you were here". Seria bom se conseguíssemos, um dia, muitos dias, estar próximos dos talentos que rondam pelos cantos dos becos, das vilas, das cidadezinhas, dos botecos de fim de rua... e de fim de noite... para podermos valorizar, divulgar, tentar encontrar possibilidades... para ajudarmos na abertura de fronteiras. À moda do João Ubaldo, concluo: "Viva o povo brasileiro!"

Um brasileiro - "Wish you were here" - (Gilmour/Waters) - Pink Floyd

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

O JEEP QUE NUNCA TIVE

 

    - "Essa é uma das muitas histórias que acontecem comigo..." 

    Pois seria tudo assim, como assim era quando, ainda menino, vi o primeiro Jeep* Willys CJ-2A, sem capotas. Seu proprietário era o Sr. Kaisã**, um imigrante japonês que passava seus dias em uma oficina mecânica da cidade. Eu gostava de ir àquela oficina para poder ouvi-lo conversar e contar histórias. Ele me falava de seu Jeep e de todos os reparos que havia feito nele... que com muitos amigos amontoados em seus bancos, ia às suas pescarias no Sapucaí. Eu admirava o Sr. Kaisã por cuidar tão bem do seu Jeep, e, influenciado por ele, eu sonhava ser mecânico e ter, quando pudesse, um Jeep tão velho, mas tão bem (des)cuidado quanto o dele.

    Havia na cidade, também, os Jeeps do Sr. Chico Barbeiro, do Sr. Vasco e do Sr. Nenzinho - este, curiosamente, proprietário de uma oficina de bicicletas, que fazia experimentos mecânicos para serem mostrados orgulhosamente em passeios pelas ruas da cidade (de uma bicicleta de quatro pedais eu nunca me esqueço). Depois, também, o Jeep do Sr. Pedro. Mas o Jeep pelo qual eu tinha um encanto especial era, sem dúvida, o Jeep do Sr. kaisã. 

    Pois aconteceu hoje, enquanto eu subia a Rua São José. Vi um Jeep Willys amarelo, sem capotas, estacionado na esquina da Avenida Itatiaia. Ao vê-lo, revi, em minhas lembranças, o Sr. Kaisã e o "jeepinho" que sempre quis ter. Dei a volta no quarteirão e parei para poder fotografá-lo.

Jeep - 20fev24 (foto: acervo pessoal)


    Enquanto fotografava, o proprietário do Jeep aproximou-se de mim. Antes que ele pudesse formular qualquer pergunta, fui logo contando a ele que aquele havia sido o meu sonho de adolescente; que eu sonhava  ter um Jeep tal como o dele, sem capotas, aberto... e que fosse um carro prático, de muitos anos de fabricação, mas que tivesse sido cuidado, reformado e reparado, quando necessário, única e exclusivamente por mim. Eu o levaria comigo à universidade quando fosse cursar engenharia mecânica, e o teria como agregador de amigos e encantador de corações femininos - tal como era cantado pelo Roberto Carlos, em "O Calhambeque", enquanto (na letra da música) o seu Cadillac permanecia na oficina para reparos.

    A imagem de um carro assim, prático, sem capotas, significava para mim juventude, informalidade e liberdade. Eu acreditava que meus amigos e minhas amigas estariam sempre dispostos a passear no Jeep que um dia eu iria ter; que, nos bancos do meu Jeep, sorriríamos muito enquanto estivéssemos acenando na direção daqueles que nos vissem passar... Se, eventualmente, ocorresse alguma quebra no veículo, eu prontamente desceria da condução do volante e, na condição de um herói estudante de engenharia mecânica, em poucos minutos efetuaria o reparo. Assim, troca de pneus, regulagem de carburador, limpeza de filtro, vazamento de óleo, fosse o que fosse, eu  seria  o mecânico que dava um jeito em tudo.



Roberto Carlos - "O Calhambeque" - (Roberto/Erasmo - 1964)
https://www.youtube.com/watch?v=nWbaV-PPPVo

    Mas, ao final daquela minha parada para fotografar o Jeep, ao agradecer ao proprietário por ter tido paciência de me ouvir, eu contei a ele que nada do que eu sonhara tornou-se realidade, que tudo ficou adormecido em sonho.

    Graduei-me engenheiro mecânico e trabalhei em fábrica por algum tempo. Mas não gosto nem um pouco de fazer reparos em máquinas e equipamentos - muito menos em automóveis. Nunca tive um Jeep. Duas ou três vezes, forçado, troquei pneu furado. Hoje, quando estou dirigindo, mantenho fechadas todas as janelas do carro... e fico ouvindo música, tentando desvendar "a alma encantadora das ruas"***... e vou observando árvores, imóveis com personalidade, e muitos transeuntes que, nessa "vida vertiginosa"****, seguem desatentos ao seu entorno...

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* Jeep - Essa palavra é a forma que soa, em português, a denominação abreviada pelas iniciais GP ("General Purpose"), que foi dada ao veículo militar da montadora norte-americana Willys Overland. Os Jeeps foram muito utilizados pelos militares norte-americanos na Segunda Guerra Mundial.

**Paulo Onodera, conhecido como Sr. Kaisã.

***título de livro publicado por João do Rio, em 1908

****título de livro publicado por João do Rio em 1911, originalmente.


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

EU E O NIEMEYER, AO SABOR DAS CURVAS

 

Croqui de figura feminina - (Oscar Niemeyer)
https://laart.art.br/blog/croquis-oscar-niemeyer/

Hoje fui à praia. Entrei na água e fiquei brincando sob o sol, ao sabor das ondas.

clique na seta para ouvir

Maysa: "Nós e o mar" (Menescal/Bôscoli)
https://www.youtube.com/watch?v=USNFfujgbk8

Mas foi na areia, sentado à sombra de um guarda-sol, que fiquei observando os traços feitos pelo Criador: "quanta beleza!; e que perfeição!" Dei-me conta, inclusive, de que Ele não se esqueceu de cuidar da arquitetura: abençoou o Niemeyer,  que traçou  muitas linhas inspiradas nas curvas e no relevo da mulher. "Ele [o Niemeyer] admirava a beleza e o corpo feminino. A mulher o inspirava" - conta seu ex-aluno e, depois colaborador, Salviano Guimarães*. O próprio Niemeyer, em "Poema da Curva", assim se explica:

POEMA DA CURVA

Não é o ângulo reto que me atrai.

Nem a linha reta, dura, inflexível,

criada pelo homem.

 

O que me atrai é a curva livre e

sensual. A curva que encontro nas

montanhas do meu país, no curso sinuoso

dos seus rios, nas nuvens do céu, no corpo

da mulher amada.


De curvas é feito todo o Universo.

O Universo curvo de Einstein.


Só sei que ao final do dia, já sob o luar, saí vagando pela orla à procura de um recanto pacífico onde eu pudesse fecundar o pensamento com taças de vinho, e ficar sonhando com o paraíso e com as deidades que um dia zanzaram pelo Olimpo.


Praia de Camburi, município de São Sebastião/SP,

29/dezembro/2023

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*Globo.com - 06/12/12 - https://g1.globo.com/globo-news/noticia/2012/12/mulher-brasileira-o-inspirava-diz-arquiteto-que-trabalhou-com-niemeyer.html

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

A BOSSA NOVA E O PASSAPORTE

 

Sacha Distel e Dionne Warwick (et Baden Powell) - "The girl from Ipanema" / "A Felicidade"
https://www.youtube.com/watch?v=LsPJP_vJ2H4

foto em https://www.youtube.com/watch?v=LsPJP_vJ2H4

    A Bossa Nova é o passaporte do Brasil, com o visto de entrada para qualquer país do mundo. E essa entrada é triunfal: leva sorrisos, leva gingado... leva sol, leva verde... leva tardes ensolaradas em "jardins de sol". E nessa praia há sempre "garotas de Ipanema": autênticas "flores que nascem morenas", e que inspiram beleza - e "(a) Felicidade". Quer mais? Pois a Bossa Nova é também o certificado de doçura da língua portuguesa falada no Brasil... que, quando soa, assim como passarinhos, tem o poder de um salvo-conduto, transpondo fronteiras, inclusive induzindo o estrangeiro a cantar e a assobiar, em instintiva elevação de alma. Com a Bossa Nova a "felicidade" não tem fim... em especial se se juntar acordes do violão do Baden a esse tempero, conforme fizeram o francês Sacha Distel e a norte-americana Dionne Warwick.
    - Ah, Bossa Nova... Ah, Brasil... somos o paraíso adormecido... muito, muito mais do que se sabe por aí!

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

PALACETE, 1922

 

Palacete, 1922 - Restaurante e Café
(foto: acervo pessoal)

Descendo a Florêncio de Abreu, no centro de Ribeirão Preto, SP, em sua esquina com a Álvares Cabral, está o Palacete Jorge Lobato. Construído em 1922, foi residência de Jorge Lobato Marcondes Machado - um engenheiro que, vindo de Taubaté, SP, havia se mudado para Ribeirão Preto. Fechado por quase 25 anos, e sem nenhuma manutenção, o imóvel foi tombado em 2008 pelo CONPPAC (Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural), restaurado em seguida, e reaberto em 2017 como restaurante.

Concerto para violino e oboé em Dó Menor (Allegro) - BWV 1060
https://www.youtube.com/watch?v=HLiqQFpMGXg 

E que restaurante! Um verdadeiro presente para Ribeirão. Estar lá, rodeado de encantos que retêm o próprio tempo, é um privilégio para observadores e gourmets de paladar requintado. Com um cardápio que oferece pratos deliciosos, é o canto aconchegante e apropriado para jantares especiais. Janelas, portas, vitrais... obras de arte espalhadas pelo imóvel, paredes decoradas... é a história que conta histórias e inspira diálogos. Composições de Bach, Chopin, Piazzolla, Villa-Lobos e tantos outros, que combinam muito bem com o imóvel, promovem a suavidade do fundo musical para um encontro perfeito: amigos, namorados, familiares, confraternizações... ou uma simples visita. Tudo lá encanta... e pede uma garrafa de vinho para a sua mesa. Vá lá conhecê-lo! Seja também personagem dessa obra de arte - e valorize: recomendadíssimo!


(site do imóvel/restaurante: https://palacete1922.com.br/o-restauro.html)  


quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

"ONE MORE FORGOTTEN HERO IN A WORLD THAT DOESN'T CARE"*

Gosto dos artistas de rua. Instalam-se em uma esquina qualquer, em uma praça, em frente a uma loja, em estações de ônibus, de trens ou metrô, onde quer que seja. Tocam seus instrumentos e cantam sem exigirem nada em troca. Seguem cantando e encantando aqueles que por eles passam. Encantam, mesmo que por um pequeno lapso de tempo, aqueles que dirigem a eles um olhar e que, passando, carregam na mente um universo de questões e histórias pessoais... histórias que reaparecem ao ouvirem o cantor de rua, que mora sabe-se lá onde, que alimenta-se sabe-se lá com o que, que canta sua própria história para uma plateia apressada que transita pelas ruas da cidade, sem saber porque ou por quem cantam os cantores de rua...


Mick Iredale - "Streets os London"** (Ralph McTell)
https://www.youtube.com/watch?v=GS7Hwd9eQsI 

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*Mais um herói esquecido em um mundo desatento
**Streets of London (Ralph McTell)
Have you seen the old man/ in the closed-down market/ kicking up the paper/ with his worn out shoes? In his eyes you see no pride/ and held loosely at his side/ yesterday's paper telling yesterday's news.
So how can yout tell me your're lonely/ and say for you that the sun don't shine?/ Let me take you by the hand and lead you through the streets of London/ I'll show you something to make you change your mind.
Have you seen the old girl/ who walks the streets of London/ Dirt in her hair and her clothes in rags?/ She's no time for talking/ She just keeps right on walking/ Carrying her home in two carrier bags.
So how can you tell me...
In the all night cafe/ at a quarter past eleven/ same old man is sitting there on his own/ looking at the world/ over the rim of his tea-cup/ each tea last an hour/ then he wanders home alone.
So how can you tell me...
And have you seen the old man/ outside the seaman's mission/ memory fading with/ the medal ribbons that he wears/ in our winter city/ the rain cries a little pity/ for one more forgotten hero/ and a world that doesn't care.
So how can you tell me...